O impacto da pandemia de COVID-19 na indústria de jogos eletrônicos

Com arenas virtuais lotadas e novos produtos no mercado, a indústria de games também teve de se adaptar às condições geradas pela pandemia.

Rafael Smeers
9 min readMar 23, 2021
Desenvolvedores da Double Fine reunidos em uma videoconferência durante o isolamento social
A Double Fine tem divulgado em seu canal de YouTube parte de seu cotidiano de trabalho, que foi tomado por videoconferências descontraídas

O desenvolvimento de jogos eletrônicos é altamente influenciado por fatores do macroambiente. Seja por conta de uma grande crise ou da saturação do mercado, as vezes basta o sopro certo pelo lado errado para que tudo vá ao chão ou mesmo se torne um sucesso inestimável. Among Us, por exemplo, foi de jogo móvel em escassez de jogadores para sucesso internacional multiplataforma graças ao Twitch e ao isolamento social resultante da pandemia da COVID-19.

No entanto, o resultado não foi o mesmo para todo mundo. Na verdade, a maioria dos estúdios tiveram de passar por adaptações severas para continuarem funcionando. Vários deles não conseguiram cumprir algumas de suas promessas e tiveram de realizar adiamentos, que em alguns casos já haviam sido realizados no ano anterior.

Adiamentos consecutivos e oportunidades desafiadoras

Diversos títulos que estavam para ser lançados no ano de 2019 foram adiados para 2020 por diferentes motivos. Um deles era a aproximação da chegada da próxima geração de consoles, o PlayStation 5 e Xbox Series S/X. Porém, grande parte dos estúdios que tomaram a liberdade de fazer isso foram surpreendidos pela pandemia em 2020 e tiveram de adiar seus jogos mais uma vez, empurrando suas datas de lançamento para 2021.

Cena do jogo Psychonauts 2
Em desenvolvimento pela Double Fine, Psychonauts 2 foi uma das vítimas de múltiplos adiamentos

Muitos deles permanecem sem uma previsão de lançamento, como por exemplo a expansão Cuphead: The Delicious Last Course, cujo anúncio ocorreu em 2018. Jogos independentes foram especialmente afetados e em sua maioria tiveram de realizar adiamentos que complicaram seus planos financeiros.

Felizmente, esses adiamentos também vieram com alguns lados positivos. O tempo extra de desenvolvimento acabou servindo de oportunidade de reflexão quanto ao estado de certos aspectos (artísticos, por exemplo), que em muitos casos foram retrabalhados e ficaram muito melhores do que antes.

O lançamento da nova geração

O grande detalhe é que, para o mercado de jogos eletrônicos, a pandemia não poderia ter vindo em tempos simultaneamente melhores e piores. A chegada dos novos consoles ao mercado aconteceu em condições nunca antes vistas e rodeada de incertezas.

Várias apresentações de consoles e jogos da nova geração foram criticadas por serem um tanto quanto vagas e desnecessariamente misteriosas

Por um lado, o isolamento social representa um aumento significativo em potenciais interessados na aquisição de consoles da nova geração. Por outro, as companhias se preocupam com sua eficiência em manter estes jogadores após o fim do isolamento social e muitas pessoas consideram esta uma época de contenção de gastos. Problemas antigos, como o scalping (monopólio do mercado cinza) e fabricação insuficiente, voltaram a assombrar consumidores e a dificultar a aquisição dos sistemas em condições justas.

Dezenas de consoles PlayStation 5 lacrados acumulados em uma sala
A revenda de consoles por preços abusivos já era realidade pouco tempo depois do lançamento oficial

Nem mesmo os jogadores usuários de computador conseguiram fugir dessas condições desfavoráveis, pois o lançamento das placas de vídeo de última geração foi assolado por problemas similares. As poucas unidades disponibilizadas para venda até então foram dominadas por mineradores de criptomoedas, e diante dessa falta de opções, mesmo modelos mais antigos acabaram com os preços nas alturas.

Em contrapartida, o Xbox Series S foi amplamente elogiado por seu preço acessível diante das outras opções, principalmente aqui no Brasil. Além disso, a disponibilidade do Xbox Game Pass (serviço de assinatura que garante acesso a inúmeros jogos) torna o console ainda mais interessante, proporcionando boa variedade de jogos por um custo acessível.

Vivendo a vida virtualmente

Embora tenham acontecido muitos adiamentos, o início da pandemia coincidiu também com o lançamento de títulos bem avaliados como DOOM Eternal e Animal Crossing: New Horizons. O exclusivo de Nintendo Switch, especificamente, ganhou tanta popularidade quanto Among Us por ser fácil de aprender a jogar e proporcionar parte do que o isolamento social levou embora.

Muitos jogadores aproveitaram a oportunidade para reunir amigos de forma extrovertida e segura. Mas cerca de um mês depois do lançamento, a ideia foi além: Gary Whitta passou a realizar a organização de talk shows virtuais com participação de famosos como Selena Gomez e Sting.

Figuras como Elijah Woods, conhecido por interpretar Frodo em Senhor dos Anéis, também estiveram ativas no jogo e interagindo com fãs. Eventualmente, o jogo chegou a se tornar até veículo de propagandas políticas, que foram então proibidas pela Nintendo.

Também não se pôde deixar de notar o aumento na procura por Ring Fit Adventure, cujas poucas unidades restantes rapidamente sumiram das lojas por conta de pessoas interessadas em se exercitar em casa de forma eficiente e interativa, já que as academias fecharam as portas. Até agora a disponibilidade permanece comprometida, com poucas unidades lacradas disponíveis e preços acima do idealizado.

Inúmeros serviços tiveram um aumento enorme e repentino de usuários. A plataforma Steam, por exemplo, vem atingindo número recorde de usuários simultaneamente ativos desde o início do isolamento social. Em março do ano passado, o número era de mais de 20.3 milhões de usuários utilizando o serviço simultaneamente. Um ano e poucos dias depois, o recorde já subiu em praticamente 7 milhões.

Gráfico de atividade de usuários do Steam conforme o site SteamDB, constando grande quantia de pessoas online
Gráfico de atividade de usuários do Steam conforme o site SteamDB (22/03/2021)

A função Steam Remote Play Together, que permite jogar títulos com modo multijogador local com amigos de forma remota utilizando a internet, recebeu diversas melhorias para melhor atender seus usuários durante o isolamento social.

Arenas virtuais lotadas, arenas físicas vazias

Jogos casuais podem ter tido um enorme aumento em popularidade, mas a competitividade não ficou de fora. Muito pelo contrário, segundo o Google for Games Global Insights Report, a procura mundial por jogos multijogadores competitivos subiu em mais de 70000%. Os servidores de vários destes jogos e de suas plataformas sentiram este aumento, enfrentando graves instabilidades por alguns dias. Vários deles só voltaram à normalidade após receberem aprimoramentos de capacidade.

Vale lembrar que os eSports vem crescendo muito ano após ano. Contudo, o isolamento social impossibilitou o acontecimento de inúmeros campeonatos grandiosos, como por exemplo a The International 2020, décima edição da mundial de Dota 2. O evento aconteceria em Estocolmo e vários times já estavam em processo de treinamento.

Alguns campeonatos menores ocorreram à distância ou foram substituídos por outras atividades, como maratonas de transmissão ao vivo. Diversos jogos aproveitaram para realizar ações de marketing criativas, como o eNASCAR iRacing Pro Invitational Series, que levou corredores famosos da NASCAR (que teve de cancelar seus eventos na vida real) a competirem entre si no jogo de simulação de corrida iRacing.

Eventos online e descentralização de anúncios

A Electronic Entertainment Expo, que já sofria com a migração de diversas produtoras para convenções menores/autogeridas (como Nintendo Direct, Nintendo Treehouse e EA Play) e com o crescimento de eventos como a The Game Awards, acabou em condições ainda mais delicadas. Como não havia muito a ser anunciado por conta das apresentações de 2019 e da espera pela nova geração, ainda mais empresas, como por exemplo a Sony, optaram por realizar eventos menores, em sua maioria completamente online (caso do Ubisoft Forward).

Imagem que divulgava a distribuição de cópias gratuitas de Watch Dogs 2 para espectadores da Ubisoft Forward
Para incentivar a presença nestes eventos online, diversas companhias dedicaram suas esperanças na distribuição de brindes como jogos e revistas digitais

O resultado foi uma caótica fragmentação de fontes de informações com datas e horários de transmissão muito desencontrados. Isso porque vários meios de comunicação diferentes decidiram fazer suas próprias apresentações ao vivo e competir por anúncios. Assim, surgiram vários eventos novos como a Future Games Show, Summer Games Fest, Guerrilla Collective, GameSpot’s Play for All e IGN’s Summer of Gaming.

A maioria deles provou-se despreparada para a tarefa, sofrendo com problemas de transmissão, apresentação monótona e até deixando de fora trailers de diversos jogos independentes participantes por mera falta de atenção. Já a The Game Awards, ocorreu no dia 10 de dezembro conforme planejado, em formato digital e sem plateia no local de transmissão.

A E3 não pôde nem mesmo abrir sua arena de testes de jogos a serem lançados no futuro. Mas em compensação, uma ação da Steam que já tinha tido uma edição em 2019 voltou a acontecer e com boa frequência: o Steam Game Festival. O evento proporcionou a usuários interessados a descoberta de inúmeros jogos independentes em desenvolvimento, bem como versões de teste que podiam ser baixadas a qualquer momento.

Arte de divulgação do Steam Game Festival de março de 2020

O Steam Game Festival gerou benefício também aos desenvolvedores destes jogos, que puderam contar com feedbacks através da Comunidade Steam e até interagir com os jogadores de forma similar à que costuma ocorrer na PAX East/West.

Maratonas beneficentes

Maratonas de jogos com objetivo de arrecadação beneficente como a European Speedrunner Assembly (ESA), Games Done Quick (GDQ) e Brazilians Against Time (BrAT) também tiveram versões totalmente digitais, sem plateia física. A Summer Games Done Quick, que ocorreu em agosto, arrecadou 2.3 milhões de dólares em doações, destinadas à Médicos sem Fronteiras (MSF). Pela primeira vez desde várias edições o valor arrecadado foi menor do que o registrado na edição do ano anterior, que havia atingido mais de três milhões.

Barreiras culturais

Apesar do home office já ser prática comum na maioria dos países ocidentais, o oriente ainda não adere tanto à ideia. Especialmente em países em que o ambiente de trabalho ainda é mais burocrático do que no ocidente, como por exemplo no Japão, as dificuldades de trabalho proporcionadas pelo isolamento social foram ainda maiores.

Naoki Yoshida, diretor da terceira divisão criativa da Square Enix (atualmente responsável pelos títulos FINAL FANTASY XI, FINAL FANTASY XIV e FINAL FANTASY XVI), citou em transmissões ao vivo que várias medidas tiveram de ser tomadas com urgência. Por conta dessas medidas, conforme os dias passavam, sua divisão se deparava com mais e mais problemas.

No início do isolamento, por exemplo, a companhia sugeriu que os funcionários tentassem trabalhar em casa utilizando seus próprios equipamentos. Porém, estes equipamentos não tinham os requisitos mínimos para a realização do trabalho de forma apropriada. Diante do problema, a equipe foi permitida a levar seus computadores para casa. Foi então que surgiu outra complicação: a conexão de rede não era tão veloz e nem tão segura quanto a disponível no escritório.

Escritório japonês da Square Enix, com mesas pouco distanciadas e ambiente muito fechado
A disposição das mesas dos escritórios japoneses inviabilizaram ainda mais o trabalho presencial | Imagem por Noclip

Para contornar o obstáculo, a equipe de infraestrutura teve de criar um sistema de VPN personalizado. Mesmo assim, alguns funcionários acabaram tendo de trabalhar no escritório, com turnos intercalados e rigorosos processos de higienização de equipamento durante os intervalos.

Segundo Yoshida, só depois de um tempo o desempenho de trabalho chegou ao equivalente a cerca de 90% do original. O lançamento da versão 5.3 de FINAL FANTASY XIV, inclusive, acabou vítima destas urgências e teve sua data adiada. Agora, a divisão trabalha para recuperar o tempo perdido e fornecer as atualizações restantes antes do lançamento da próxima expansão, que dará um desfecho à trama principal.

Transformando montanhas em colinas

O ano virou e, diferentemente da trama principal de FINAL FANTASY XIV, o desfecho da pandemia infelizmente ainda não parece se aproximar. Embora seja possível afirmar que as desenvolvedoras se encontram em posição muito mais estabilizada do que no início da pandemia, este ano ainda guarda muitas dúvidas e expectativas quanto à realização de eventos de eSports e de anúncios.

Espera-se que as experiências do ano passado sirvam de parâmetro para aprimoramentos e que o desgaste gerado pelos grandes desafios de então sejam revertidos em resultados positivos. Com o início da nova geração e a chegada de massas de novos jogadores, estratégias de fidelização serão mais importantes do que nunca e a importância de serviços como o Xbox Game Pass só tende a aumentar.

Por enquanto, ficamos com a percepção de que as condições geradas pela pandemia serviram de forma a validar a capacidade dos jogos eletrônicos de proporcionar entretenimento de formas inigualáveis e de que graças a gestores favoráveis à liderança transformacional, esta indústria tem potencial de superar obstáculos e contornar problemas de forma ímpar.

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Rafael Smeers
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Written by Rafael Smeers

Game QA/Localization & Inbound Marketing. Previous works include Dauntless, 24 Killers and Snap the Sentinel. pt_BR / en / es / ja

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