Stardew Valley: um título amargo mas que destaca interesse ao seu gênero
Agraciado pela humildade crítica, o jogo é uma adição fraca ao seu gênero, mas pode ter sido logo o necessário para retomá-lo.
Demorou, mas eu sabia que eventualmente acabaria escrevendo esse texto. Era inevitável, pois com a grande popularidade que conquistou, Stardew Valley se torna parte de conversas de forma bem frequente. Todas as vezes em que isso acontece eu sou o responsável por fazer papel de chato, colocando na mesa que como um fã do gênero achei a experiência um tanto quanto apagada e então apresentando o porque.
Acompanhei o desenvolvimento do título desde o início e cultivei expectativas ao longo de quatro anos. Talvez isso tenha contribuído para a minha decepção, mas a ideia deste texto não é desmerecer quem conseguiu aproveitar o jogo ou mesmo lhe apontar motivos para não o conferir. A ideia é construir uma argumentação do porque muitos dos elogios que Stardew Valley recebeu e continua a receber são gentis demais e parecem partir de visões muito humildes do gênero, acompanhado do motivo pelo qual isto também pode acabar gerando benefícios.
Esta argumentação será realizada através de cinco pontos (de certa forma diretamente interligados) em que o título peca, comparando estas imperfeições com a forma com que elas são evitadas por outras franquias. Por mais que essas franquias tenham sido desenvolvidas por equipes maiores e mais experientes, mais uma vez reforço: o objetivo deste texto é mostrar que muitos dos elogios a Stardew Valley desconsideram suas insuficiências.
Passar do tempo pobre de surpresas e imprevistos
O início do enredo de Stardew Valley não se distancia muito do visto em títulos da franquia Harvest Moon, mas seu desenvolvimento acaba por ser bem diferente. Isso ocorre por causa de uma particularidade muito importante em jogos do gênero: a forma com que o passar do tempo é retratado através de surpresas e mudanças além do controle do jogador.
Diferentemente de boa parte dos jogos da franquia Harvest Moon e Rune Factory, a grande maioria das mudanças em Stardew Valley ocorrem através de ações do próprio jogador em vez do decorrer dos dias. Isso faz com que o jogador tenha “controle demais” do tempo, e muitas vezes é possível fazer com que aconteçam coisas mais significativas em uma única semana do que ao longo de um ano inteiro de jogo. Isso se torna um grande problema uma vez em que o jogador passa a perder o incentivo de continuidade ao prever que nada de novo acontecerá nos próximos dias.
Apesar do jogador encontrar novas personagens em locais fora de Pelican Town, apenas um “morador novo” (Kent, que estava servindo o exército) chega à vila ao longo de todo o jogo. Trata-se de uma precariedade absurda em comparação à forma com que Rune Factory Frontier, por exemplo, mantém o jogador entretido com a chegada de novos moradores em Trampoli.
A sensação é de que a vida das outras personagens depende de forma massiva das ações do jogador, levando embora o charme do storytelling usualmente adotado pelo gênero. Inevitavelmente, as personagens acabam previsíveis e artificiais demais, fator que passa a prejudicar e muito o fator social do jogo. Com o fator social (uma das maiores features do gênero) prejudicado, inúmeras outras mecânicas são danificadas e/ou perdem seu charme.
Personagens problemáticas, apáticas e genéricas
Em todos os jogos do gênero um dos desafios apresentados ao jogador é o desenvolvimento da vida social de sua personagem, implicando no cultivo de amizades e eventualmente no envolvimento do jogador com a vida de cada uma delas. Este envolvimento se dá pela maleabilidade da rotina do jogador para a realização de visitas, entrega de presentes e encontros em ocasiões especiais.
Apesar destas formas de envolvimento estarem presentes em Stardew Valley, elas se tornam menos interessantes visto que o jogador corre o risco de não se identificar com personagem alguma devido à falta de importância delas em sua rotina. Todas as personagens casáveis de Stardew Valley assumem papeis secundários demais, principalmente em comparação às pretendentes presentes em títulos como Rune Factory Frontier e Harvest Moon: Back to Nature.
As personagens de Stardew Valley que mais se destacam são justamente aquelas que o jogador tem mais contato diário (donos de lojas e prestadores de serviços), sendo possível criar uma exceção ao morador de rua Linus, que ainda assim perde em originalidade visto a existência de Murrey em Harvest Moon: A Wonderful Life.
A existência de personagens memoráveis em títulos do gênero é indispensável e as vezes focar em características acentuadas é a melhor forma de criá-las. Um senhor que carrega um gato preto no ombro e costuma tomar iogurte durante idas à casa de banho, um vendedor cafona com ar de vigarista ou um médico ciborgue que anda de cueca são difíceis de esquecer.
A apatia inicial extrema de boa parte dos moradores de Pelican Town em relação ao jogador por si só já desanima bastante. Como se não bastasse, encontros ocasionais raramente saem da insensibilidade. Para ser sincero, até mesmo a relevância de afetos desenvolvidos em Stardew Valley é questionável, visto que os eventos geralmente envolvem poucas personagens simultaneamente e não contam com muitas variações de diálogo conforme afetividade desenvolvida.
Falando em eventos, existe um outro tipo de evento (além dos de finalidade estritamente social) em Stardew Valley que deixa a desejar: os festivais. De grande importância em outras franquias, alguns festivais do título parecem até que foram implementados apenas por “obrigatoriedade”.
Festivais irrelevantes e pouco desafiantes
Participar de verdade de festivais através de minigames como uma corrida a cavalo, uma competição de natação e uma guerra de tomates é mutuamente mais interessante do que andar por um labirinto minúsculo ou procurar ovos mal escondidos.
Não é preciso desenvolver mecânicas complexas para criar festivais divertidos e desafiadores, basta dar controle ao jogador e criar situações fora de sua rotina comum. Os festivais de Harvest Moon: Back to Nature não só utilizam essa premissa, como recompensam o jogador de forma significativa (como aumentos de afeto com outras personagens e a “melhoria” de seus animais, que passam a produzir com maior qualidade).
Os festivais de Stardew Valley, por sua vez, focam em situações que não fogem tanto do que o jogador costuma fazer em seu dia a dia, oferecendo prêmios cosméticos e em sua maioria fáceis demais de obter. Muitos desses festivais inclusive focam só no diálogo com outras personagens e acabam prejudicados por causa disso.
Ao conferir a situação da economia do jogo, não é de surpreender que Stardew Valley não conceda prêmios que envolvam dinheiro diretamente ao jogador durante os festivais. Uma coleção de barras de cereal, refinadores de materiais na fazenda e um kit de ferramentas são suficientes para te tornar rico com pouco esforço e em pouco tempo.
Economia desbalanceada
Stardew Valley apresenta adições interessantes ao gênero como sprinklers, redes de pesca, caixas de apicultura e máquinas de refinaria de materiais. Só existe um problema: essas adições são algumas das principais responsáveis pela facilidade de produzir dinheiro no jogo, no início não exatamente por se tratarem de automatizações, mas por que ficam disponíveis ao jogador de forma bem rápida e não exigem muito investimento de tempo e dinheiro.
A possibilidade de vender frutos selvagens (disponíveis com alta frequência) e materiais como minérios, madeira e derivados também é interessante, mas é outra responsável pela facilidade de produção de dinheiro no título. É difícil negar que este modelo de economia (parcialmente adotado por Rune Factory) cria a possibilidade de diferentes playstyles, mas em Stardew Valley por vezes se torna muito mais conveniente focar em uma só atividade não por escolha, mas por praticidade.
Seria possível utilizar o aumento gradual nos custos de construções como contrapartida, mas a maior parte delas está longe da obrigatoriedade e serve principalmente para produzir mais dinheiro, que já não é mais necessário. Dentre os jogos do gênero que já joguei até hoje, Stardew Valley foi o que menos exigiu esforços para a produção de dinheiro.
Falta de uma característica própria
Várias desenvolvedoras orientais são peritas em desenvolver mecânicas e/ou personagens que se tornam características de suas franquias. Rune Factory, por exemplo, conta com dungeons, Runeys e a captura, domesticação e treinamento de monstros selvagens (como Fluffies) para uso na fazenda.
Harvest Moon, por sua vez, conta com os Harvest Sprites, duendes que auxiliam o jogador nas tarefas diárias se este mantiver uma boa relação com eles e treiná-los. Em alguns títulos da franquia (como Harvest Moon: A Wonderful Life), eles assumem papeis mais relacionados ao enredo e assumem outras funções.
Já Stardew Valley não conta com uma mecânica característica (o Community Center sendo o mais próximo disso e apenas se relevarmos sua pouca diferenciação de uma mecânica presente em Harvest Moon: Magical Melody). Quanto a mascotes, podemos citar no máximo os Junimos, que apesar de assumirem um posto de certa importância para o enredo, se tornam menos relevantes ao cumprirem o seu “papel principal”, voltando a aparecer apenas como colheiteiros na fazenda do jogador uma vez que uma Cabana de Junimos for construida.
As causas e o lado positivo da humildade crítica
“Mas Pelican Town é citada múltiplas vezes como uma vila pequena e parada!”. Sim, é verdade. Mas vale se perguntar: até que ponto a forma com que essa representação foi realizada ficou interessante para o jogo? Será que estas “insuficiências” realmente foram planejadas como forma de representação destas características? As vilas de Harvest Moon e Rune Factory são tão pacatas quanto Pelican Town, mas nem por isso são um poço de monotonicidade.
Mas afinal, citadas estas insuficiências notáveis de Stardew Valley, por que tantas críticas citam o título como uma “grande inovação”? O fato é que a maioria dos grandes títulos do gênero são de franquias orientais e sempre lançaram em no máximo uma ou duas plataformas simultaneamente, mas jamais em um número tão grande quanto oito plataformas no total.
Plataformas como PC e Mobile jamais tiveram títulos de peso do gênero e isso inevitavelmente acaba criando critérios de avaliação mais flexíveis. A prova é que outros títulos que recentemente tentaram abordar o gênero mas também apresentaram imperfeições notáveis como Yonder: The Cloud Catcher Chronicles e My Time At Portia receberam avaliações consideravelmente altas na Steam. Mesmo Harvest Moon: Light of Hope Special Edition, um dos títulos menos bem acabados da franquia, conta com uma maioria de avaliações positivas na plataforma.
Ainda que estas críticas sejam gentis demais, o Metascore e User Score de alguns destes jogos (principalmente de suas versões em outras plataformas) são mais coerentes e vale notar que mesmo as pouco criteriosas trazem um lado positivo: exposição de interesse. O gênero tem apresentado ótima revitalização com notícias como a produção de uma versão localizada de Doraemon Story of Seasons e com anúncios de desenvolvimento como Rune Factory 5 e novos títulos tanto de Story of Seasons quanto Harvest Moon. Isso sem falar de títulos independentes em produção como Re:Legend.
As críticas positivas não são o único indício da boa recepção ocidental de jogos do gênero, visto que a maioria deles exige a presença das mesmas qualidades que levaram a franquia Animal Crossing a conquistar o ocidente. Porém, a grande popularidade de Stardew Valley pode ter sido justamente o combustível necessário para renovar a chama dos simuladores sociais de agricultura ao ponto em que, além de como já dito servir de sinalização de interesse, não deixa de ter validade como título introdutório ao gênero. Assim fico na espera de que este público ter provado do amargo primeiro acabe possibilitando que tanto a exigência quanto a apreciação ao gênero aumentem graduativamente.