A representação da mente em jogos eletrônicos
A interatividade dos videogames proporciona representações da mente humana criativas e muito além dos clichês de Hollywood.
A mente é assunto hollywoodiano já tem tempo e isso vem com seus preços. Para não ser injusto, filmes como Inside Out até conseguiram representar a mente sem a utilização de grandes enigmas e despertaram interesse ao assunto nos mais diversos públicos. No entanto, o quanto a interatividade pode adicionar a este tipo de experiência?
Um número significativo de jogos eletrônicos comprovam que a resposta é muito. A junção da interatividade e da forma pela qual a mente humana funciona, inclusive, pode gerar benefícios aos próprios jogos através da harmonia ludonarrativa. Em God of War (2018), por exemplo, Atreus passa a superestimar-se após uma descoberta e para de responder aos comandos de Kratos (controlado pelo jogador).
Mas a representação da mente em jogos eletrônicos vai muito além de pequenos momentos de harmonia ludonarrativa e subentendimentos. Vários deles procuram construir todo o seu cenário e até suas mecânicas de jogabilidade com o intuito de abordar a complexidade e capacidade mental de uma maneira diferenciada.
Aviso: este texto pode conter spoilers leves de Ace Attorney, Persona 5, Psychonauts, Alan Wake, Control e Silent Hill 2, visto que algumas informações são imprescindíveis para contextualização básica. Ao mesmo tempo, o texto evitará aprofundamentos demais.
Ace Attorney: espontaneidade da linguagem corporal e lógica
Mesmo nossas mentiras mais inofensivas podem acabar arruinadas por uma simples risada fora do lugar. O corpo fala e muitas vezes acaba sendo o maior inimigo da nossa mente, que não consegue manipulá-lo o tempo todo.
Se você conhece a franquia Ace Attorney, talvez saiba também que um de seus aspectos mais elogiados são animações minimalistas porém extremamente bem construídas e adequadas à construção da personalidade de cada personagem.
Essas animações não contribuem só para a construção das personagens e do enredo, mas também para a jogabilidade. Em Gyakuten Kenji 2 (conhecido extraoficialmente no ocidente como Ace Attorney Investigations 2), o jogador enfrenta suspeitos em batalhas de lógica em que a linguagem corporal do oponente sugere eventuais obstruções da verdade pelas quais o protagonista procura.
Lançado no mesmo ano, L.A. Noire (2011) apresentou proposta similar, desafiando o jogador a analisar expressões faciais altamente complexas enquanto conduz suas investigações. Embora um se dedique à caricaturização e o outro ao realismo, ambos são muito eficazes em nos lembrar o quanto nossa comunicação não verbal é responsável pela construção de nossa imagem.
Persona 5: máscaras sociais, inconsciente coletivo e subversão
Falando em construção e domínio da imagem pessoal, Persona 5 (2016) constrói um enredo altamente influenciado por este tópico e psicologia analítica em geral. Graças ao poder de manipular diferentes personalidades, o protagonista cultiva rapidamente uma rede de relações sociais que o proporciona diversos benefícios.
Essa controle de personalidades se assemelha fortemente ao conceito das máscaras sociais (ou persona), entendidas como os papeis específicos que desejamos desempenhar em cada situação e as mudanças às quais nos submetemos para isso. O domínio desse tipo de habilidade exige o conhecimento de cada um desses papeis e suas personalidades para melhor executá-los e agradá-los, desafio presente em várias partes do jogo.
Benefícios como esses permitem que o protagonista e seus aliados façam justiça com as próprias mãos e utilizem o inconsciente coletivo (representado por uma estação de metrô, um não-lugar segundo Marc Augé) para impedir desastres.
No entanto, nem todas as maldades humanas originam de sentimentos e situações banais. Algumas delas partem de subversões mais obscuras, capazes de distorcer a maioria quando não todas as concepções do indivíduo em questão. É aí que entram vários outros elementos do enredo e da jogabilidade, como os palácios (representações da distorção de concepções individuais) e os tesouros (representação e materialização da origem da distorção).
Psychonauts: rejeição, trauma e paranoia
Em contrapartida, em Psychonauts (2005), o jogador conhece de perto as memórias mais dolorosas de cada personagem, mas não tem a capacidade de alterá-las, apenas encontrá-las para entender melhor a origem de cada um deles, que tem muito mais pontos em comum entre si do que imaginam. O interessante, contudo, é a influência que essas memórias tem na construção dos cenários que compõem a jornada.
Em The Milkman Conspiracy, por exemplo, Raz explora o mundo mental de Boyd Cooper, um guarda de sanatório fanático por conspirações. No local, uma vizinhança retorcida e cheia de abstrações, o jogador se encontra em constante vigilância, rodeado de sombras, câmeras secretas e detetives perturbadores.
Após ultrapassar diversos obstáculos e oponentes, o protagonista eventualmente reaciona uma personalidade corrompida e inibida de Boyd Cooper, que passa a ter efeito no mundo real e gera consequências favoráveis ao jogador. Desta forma, por mais que não seja possível livrar as personagens de seus passados, Raz os utiliza para um bem maior.
Psychonauts 2, com previsão de lançamento para este ano, pretende fazer uso de tecnologias atuais para proporcionar jornadas psiquícas ainda mais ousadas e criativas, sem abandonar o que tornou o primeiro título em um clássico de seu gênero.
Hellblade: Senua’s Sacrifice: saúde mental e psicose
Atualmente, é impossível falar da representação da mente em jogos eletrônicos sem mencionar Hellblade: Senua’s Sacrifice (2017). Mais do que isso, Hellblade é um exemplo a ser seguido, contando com consultorias do professor de neurociência Paul Fletcher para abordar distúrbios mentais de forma precisa e respeitosa.
Com fortes raízes na cultura celta, o título conta a história de Senua, uma guerreira cuja terra-natal foi invadida por vikings e o amante foi sacrificado aos deuses nórdicos. Esses eventos traumáticos a levaram a desenvolver sintomas psicóticos, que se manifestam ao longo de sua missão pelo inferno viking de resgatar a alma de seu amor.
Segundo Paul Fletcher, um dos objetivos durante o desenvolvimento do jogo foi mostrar que, diferentemente do que pensamos, aquilo que consideramos como a realidade também se trata de uma manipulação de nossa mente. Ou seja, todos temos percepções alteradas similarmente a Senua, apenas menos intensas e fantasiosas, o que pode ser justificado pelos tipos de evento pelos quais ela passou.
Em diversos casos, não há necessariamente uma luta contra a existência dessas percepções alteradas, mas a busca de como viver com elas da melhor forma. Assim, o jogo utiliza de diversas técnicas para aproximar o jogador de todos estes conceitos e destruir o estigma de que condições como a psicose dominam e definem seus portadores.
Alan Wake: ambiguidade, surrealismo e terror psicológico
Partindo um pouco mais para o terror psicológico causado por mundos maleáveis ao supernatural, Alan Wake (2010) coloca criação contra autor, ou conforme sugestões de ambiguidade, autor contra criação. Após um acidente envolvendo sua esposa durante uma viagem a um local supernatural, o autor se depara com uma série de acontecimentos surreais como psicocinesia recorrente espontânea, ilusões e loops temporais.
O detalhe importante é que, através de páginas de uma obra que não lembra de ter escrito mas pouco a pouco se torna realidade, o protagonista (e o jogador) muitas vezes descobre com antecedência o que acontecerá e como proceder. Contudo, as páginas costumam ser encontradas fora de ordem cronológica, provocando o psicológico de Wake.
A todo o tempo o título busca deixar o jogador em dúvida quanto à veracidade dos acontecimentos, aos mistérios de Bright Falls e Cauldron Lake e ao estado mental de Wake, que parece ser cada vez mais tomado por pesadelos e pela divisão de seu próprio racional e irracional.
Control: projeção astral, manipulação mental e resonância interdimensional
Com eventos e personagens situados no mesmo mundo de Alan Wake, Control (2019) explora as relações da mente com o desconhecido das maneiras mais instigantes e curiosas possíveis.
Logo de início, a própria Oldest House, espécie de estrutura viva em que o jogo ocorre e que abriga o FBC, causa sensações de não pertencimento ao jogador pelo uso da arquitetura brutalista e de movimentações anaturais. Com capacidade imprevisível de remodelagem e salas tão amplas quanto abandonadas, os cenários harmonizam com o enredo e criam uma cidade fantasma secreta em que os habitantes restantes são em sua maioria objetos e fenômenos paranormais.
Como forma de treinamento para combater estes objetos e fenômenos paranomais que ameaçam a existência do FBC, Jesse Faden, a protagonista da história, utiliza de projeções astrais — que por uma particularidade do enredo só ela pode realizar — para acessar uma dimensão misteriosa denominada de Astral Plane. Conectada à mente humana, nela um grupo de entidades paranormais garante instruções e uma série de testes à personagem.
A principal força paranormal contra a qual Jesse luta e a maior responsável pela desordem do FBC durante os eventos do jogo, a Hiss, é uma resonância interdimensional malévola que toma posse de mentes alheias e outros objetos paranormais com o intuito de expandir cada vez mais seu sinal e desta forma se tornar cada vez mais forte. Porém, por conta de um acontecimento em sua infância (como você pode imaginar, também paranormal), a protagonista conta com uma resonância interdimensional protetora, que a permite desenvolver habilidades como telecinesia, levitação e manipulação mental nas circunstâncias certas.
Silent Hill: ilusão, tangibilidade do inconsciente e fobia
A grande maioria dos jogos da série Silent Hill se passam em uma cidade rural americana de mesmo nome, onde as personagens passam por um fenômeno de realidade alternativa denominado de Otherworld. Embora toda Otherworld seja baseada em Silent Hill (com poucas exceções), as ilusões experienciadas são manifestações do inconsciente de cada vítima, como por exemplo fobias.
Repleta de charadas que o jogador deve resolver para progredir no enredo, a série também conta com simbolismos dos pés à cabeça. Especialmente em Silent Hill 2 (2001), conhecido como um dos melhores survival horror de todos os tempos, estes simbolismos são utilizados de forma a confundir e impactar o jogador. Conforme James (o protagonista) passa a compreender suas ações, várias de suas ilusões começam a ser substituídas pela realidade.
Ainda referente aos simbolismos e à tangibilidade do inconsciente, alguns dos inimigos de James, como os manequins e as enfermeiras, são fruto de seus desejos sexuais, enquanto Pyramid Head vem principalmente do desejo de punição do protagonista por conta de seus sentimentos de culpa.